segunda-feira, 25 de março de 2024

 Dia de aniversário da minha mãe.

Este caderno é bem o caderno da crise. Em dois anos não cheguei ao fim. Talvez por causa do fim de muitas outras coisas. Bem espremido, o que restará dele? 

Que saudades do tempo em que em pé, entalado na multidão, balançando-me de um lado para o outro no meio da mole ao ritmo da marcha do autocarro, procurava reter na mente uma frase, uma descoberta, até que a pudesse registar num caderno análogo a este e antes que se varesse da memória...

Já houve tempos em que estes cadernos me salvaram a vida. É caso para dizer que não basta estar vivo para se poder dizer que estamos a viver.

quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

AO ENTARDECER, FICO A VER



Ao entardecer, fico a ver

os barcos a desaparecer

e a noite a avançar.

Há uma calma solene no ar

como que a dizer-nos 

que o dia está a morrer.

Como nós, também.

Mas já que estamos

em pleno milagre,

talvez amanhã 

ressuscitemos com ele.


Agora, um pouco depois,

acima da linha do horizonte

uma poalha rosa estendeu-se

de uma ponta à outra.

O verde escuro de algumas copas

Intensificou-se; 

apareceram as primeiras luzes

como alfinetes perfurando

a magnífica tela do cenário.


O silêncio ganha ecos,

o coração do mundo bate.

Os pássaros apressam-se 

a regressar aos ninhos.

Tudo anuncia a lua cheia

Que detrás daquele morro 

aparecerá para depois

se banhar majestosa

no mar que tenho pela frente.


Já se me torna difícil

ver o papel onde escrevo.

Tudo se funde.


O rosa foi-se; agora

é só omnipresente o azul acizentado,

os castanhos e os verdes reunidos,

enquanto um fantasma iluminado

cruza o mar feito lago á minha frente

e todos avançamos em direcção à noite,

à noite e à morte.


A lua cheia reapareceu

e vai subindo no que de

visível ainda sobra do céu.


Onde ela brilha

tudo se apaga

E assim se fecha

o caderno e o entardecer.


Sex, 29 Set 23

quarta-feira, 20 de setembro de 2023

 GRAVAÇÕES


Caminhos e atalhos

17/03/2017

No caminho não há atalhos:

qualquer atalho é um atraso.


Decisões

26/06/2018

Deus me dê força

para me agarrar

às minhas decisões.


Falhar

17/12/2018

A arte de falhar não é

a arte de perder:

o erro fica connosco.


Casa

18/02/2019

Viver no paraíso

pode não ser suficiente.


Sono

12/05/2019

Adormecer é

estancar a hemorragia

de pensamentos.


Exércitos

11/02/2020

Para fazer um exército 

basta um uniforme, 

basta uma bandeira

e um hino.

Talvez por isso é que não gosto

de nenhuma destas coisas.


O jogo da cabra cega

10/10/2020

A memória anda sempre

atrás da consciência e

chega sempre atrasada.


O idealismo

10/10/2020

Aquilo que podia ser

é o universo paralelo

onde gostaria de me mexer.


Os desgostos

11/10/2020

São tantos os desgostos 

que já não consigo guardá-los. 

Quero esquecê-los.

É por isso que durante toda a vida

dei tão pouco tempo

a cada um deles.


A arte às escuras

14/12/2020

Quantos poemas não escrevi

de olhos fechados

no escuro da noite.


Na hora da morte, num só segundo

08/02/2021

Na hora da morte, num só segundo

vemos desfilar toda a nossa vida,

num só instante.

Eu, que estou a morrer

há muitos, muitos anos,

todos as noites sonho

com o passado em episódios.

Ausência

14/05/2021

Fazes-me tanta falta…

Demorei tanto tempo a perceber-te

que só o comecei a fazer

quando já não estavas!


Espelho

14/05/2021

É impossível prever tudo!

Falta sempre qualquer coisa…

Hoje foi… isto e aquilo,

e aquilo era tão óbvio…

Outra coisa era adivinhar

que iria utilizar este sistema

de falar sozinho e ter a esperança

de que devolvesse as tolices

que aqui planto.


Técnica

14/05/2021

Passei a vida a dominar a técnica

mas depois nunca a utilizei

e acabei por esquecer

todas as possibilidades

que se me tinham aberto.


Hospital de São Francisco

26/05/2021

Então porquê é que o senhor veio cá hoje?

Como? Não sabe? Já se esqueceu?

Então é bom sinal,

é sinal que já passou.

Obrigado, Senhor Doutor…


Torcer a vida

30/05/2021

É preciso torcer a vida

para que ela venha ao nosso encontro.


O lápis

02/06/2021

Naquela manhã percorri

as lojas todas da terra

à procura de um lápis,

vulgaris, de Lineu.

Nenhuma o tinha:

em nenhum sítio

sabiam o que isso era, 

só conheciam o lápis.


A alma e o corpo

20/08/2021

A alma é como o corpo

sente-se quando dói.


Registo

04/10/2021

Registar é fixar.

Pelo menos, tentar.


Jardins da Avenida da Liberdade

07/02/2022

Esquecer-me é a expressão

que cada vez melhor conheço.


Criar o mundo

26/03/2022

Só há uma forma de compreender

o mundo: é criá-lo.


Salvação

03/10/2022

Estou excluído da minha própria

salvação.


A bicicleta

04/01/2023

Primeiro passeio do ano:

qualquer pequeno obstáculo

tem que ser abordado de frente

sob o risco de queda.

É assim com a bicicleta,

com o barco e

com a própria vida.


Um dia aziago

09/06/2023

Um dia aziago,

aparentemente,

já que todas as intenções se goraram

ou quase todas:

bater com o nariz na porta

quando se procura um restaurante

para almoçar, nunca existir a cor

que se procura e pretende,

sentir na pele a ingratidão

da juventude, como uma

invectiva à nossa própria velhice

que já nos pesa tanto

e tanto esforço exige

para ser aligeirada.

Mas, por outro lado,

constatar que o princípio da incerteza

tudo inunda e que assim sendo

nada é já uniforme,

nem sequer a sucessão dos dias.

Talvez a chave para conseguirmos

sobreviver e seguir em frente

seja aquela frase curta e plena,

plena de graça,

de alguém que já não nos acompanha:

É um dia diferente…


A vida e a escola

18/09/2023

Não há escola da vida

que não seja

a escola da vida.










segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

Aqui estou -- travado por mim próprio -- e, como dizia R., a conseguir ouvir a passagem do tempo. Com a remota esperança de assistir ao encher da minha própria maré. Sei, e no entanto estou paralisado, que só o fazer pode continuar a tecer o fio da vida.

Filologia, era a nomenclatura para a noção que queria transmitir, o que procurava.

(princípios de Outubro de 22)

quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

Passo ao lado de ruínas: casas, jardins. Há muito que o mundo se fragmenta. Regurgita lentamente e reconstitui-se num outro. Mas a beleza, Meu Deus! Onde ficou?

Diz Roland Barthes que a poesia japonesa tem sempre um referente temporal: a uma estação, a uma hora do dia, a uma atmosfera (a ventania, a queda de chuva ou de neve...). É essa necessidade premente que sinto: nunca o perigo do desnorteamento, da confusão, de perder o pé, foi maior. Os anos escorrem uns sobre os outros de tal forma que a noção de quando acaba um e começa o outro se perde. Os lugares transitam, mudam de sítio, perdem a ordem cronológica. 

É preciso fixá-los. Prender os acontecimentos ao calendário, interromper a desordem em que se transformou a vida.

(25Out22)

Como a memória começa a ser intermitente como a luz do pirilampo tomei a resolução de resumir todos os dia no pequeno espaço reservado a cada um deles na agenda que comprei.

Escrever por escrever nunca é escrever por escrever porque esse exercício põe em movimento muito mais do que o papel e a caneta; a questão transporta-nos à dilemática da arte pela arte que não resume a arte.
É que as palavras para fazerem sentido, qualquer sentido, têm que ter um fio condutor e esse fio é o do raciocínio, é o pensamento.
E não há coisa mais necessária ao homem.
Pensar, o maior desporto, o maior exercício, o maior luxo.
Do que se escreve alguma coisa fica. E o que fica é a nossa maior preocupação. Como ter chão sob os pés.

Estar à espera parece ser a grande, a maior e única ocupação da maior parte da humanidade. E a grande espera, a maior, a omnipresente, é a da morte. É a espera que engole todas as outras e a única que não oferece qualquer dúvida. É mesmo a única carregada de certeza. Mas de uma certeza em que não se acredita.

(Ter,10Mai22)

Como o tempo arredonda os bicos das coisas mais escandalosas e escabrosas! A paixão acaba sempre por obter o seu perdão.

A doçura di viver não estará sempre ligada a uma certa inocência? A uma leveza que não admite o pesadume e antes advoga a flutuosidade. Por amor tudo é permitido: é a lição de Prima della Rivoluzione.

(Sex,11Mar21)